Design e Indústria no pensamento e produção da forma

Como a industrialização nos influenciou no modo de produção e no que produzir? E mais ainda, como ela nos influenciou no modo de pensar? Há algumas respostas mais óbvias ou conhecidas, como a iluminação artificial, com ela foi possibilitado o “prolongamento” do dia, ou a ideia das famílias reduzidas para se ter menos “bocas para alimentar”. Apesar de se haver uma gama de novos aspectos introduzidos às nossas vidas (levando em consideração os 10 mil anos de história humana) com a possibilidade de serem explorados e estudados à fundo, restringiremos nosso escopo a uma análise desse elemento tão comum em nosso dia-a-dia que é o Design, veremos como essa atividade de planejar formas vem sendo exercida no contexto da industrialização, tendo passado por fases nas quais se voltou para o homem e outras mais para a máquina, e ao final iremos refletir e especular  um pouco sobre as tendências futuras.
Apesar de todas as discussões sobre origem do Design, dando margem para interpretações tanto de que ele sempre esteve na nossa sociedade, quanto de que ele é algo exclusivo da modernidade, é inegável a relação de cumplicidade entre Design e a indústria moderna, com a sua própria estrutura, mindset e demandas renovando o Design, e este, por sua vez, trazendo mudanças nesse modo de pensar, da linguagem (verbal ou não), e nas formas utilizadas, a relação de ambos é próxima a ponto de render à área de estudo e atuação o nome de desenho industrial aqui no Brasil, sendo no final evidente o papel da indústria para tornar o Design algo tão presente no cotidiano. Hoje o modelo de consumo, produção e logística industrial já é via de regra em tal grau que quando nos deparamos com frases oferecendo um certo grau de estranhamento, seja pequeno o quanto for, a essa realidade não é difícil de se deparar questionando há quantos séculos foi escrito o texto, e vale ressaltar, é possível ver em certa dose esse estranhamento até num historiador do Design como John Heskett, o qual se referia com certa surpresa a uma constatação comum no mundo industrializado de hoje sendo a dominação de cada vez mais e em mais lugares os ambientes pelos produtos de fabricação industrial, estando espantado com o fato de eles estarem nos lares, locais de trabalho, fábricas e mais outros lugares nos quais se é praticamente senso comum que se tenha móveis, eletrônicos e outros produtos industriais (HESKETT, 1997, p.10).
No entanto, o estranhamento é um grande passo amistoso da relação entre a sociedade e o modelo industrial de produção, a conturbada interação Homem-indústria era bem hostil, e tomava o pensamento do século XVIII uma ideia de degradação da moral e do bem-estar comum atrelado à indústria “É comum encontrar nos escritos de pensadores do Romantismo […] denúncias da brutalidade do industrialismo por explorar o trabalhador, destruir a paisagem natural e reduzir a vida social ao mínimo múltiplo comum da troca econômica”(CARDOSO, 2008, p. 76). A citação ao pensamento romântico é muito reveladora pois este poderia ser visto até como uma antítese ao olhar progressista industrial o qual começava a se instaurar naquela época, de um lado temos uma exaltação ao bucolismo, do outro o ambiente urbano e as máquinas como força motriz para um futuro melhor, subjetivismo emotivo e pragmatismo racional, resgate medieval contra uma ode ao novo. Ao olhar um conflito aparentemente inconciliável desses, de princípios tão reacionários entre si, fica até uma dúvida de como produtos industriais se tornaram não só algo aceitável na contemporaneidade mas também chegaram ao ponto de serem a maioria esmagadora daquilo que se encontra disponível no mercado, será a indústria realmente é o monstro de carisma irresistível do qual tanto tentaram nos avisar? Na verdade tudo ocorreu de forma bem gradual e heterogênea, com diferentes países, áreas de atuação e contextos sociais tendo cada um seu ritmo de aceitação da indústria, por vezes com a sociedade da época se desdobrando aos moldes do industrialismo e por outras com o oposto ocorrendo.





LOUTHERBOURG, P. J. Coalbrookdale by Night, 1801 – Uma pintura praticamente sintetizando o pensamento pessimista do romantismo em relação à indústria
De início é possível se ver algo mais voltado a uma corrente humanista de pensamento, no fim do século XIX havia um esforço ativo de indivíduos tentando moldar a realidade fabril com o gosto por vertentes mais tradicionais que se havia na época, trazendo um pouco do artesanato à indústria, planejando-a com um olhar humanizador, essa modelagem de gosto foi muito importante para adequar a produção industrial a um padrão mais moral, mais aceitável e palpável, distanciando-a da visão distópica de máquinas colossais tirando o ganha pão dos homens, engrenagens, barulho ensurdecedor e chaminés rasgando os céus com nuvens negras, a busca por uma moralização industrial foi de certo modo, mesmo não intencionalmente, ambiente para fazer a indústria se popularizar e ser mais aceita publicamente. Nesse contexto de um confronto entre o industrialismo e demandas éticas e sociais que foram pensadas as primeiras proposições de design como motor para a mudança (CARDOSO, 2008, p. 76), a forma com a qual se deu a mudança foi por meio de um resgate a características medievais e românticas, tais como a valorização ao fazer artesanal, apelo à estética gótica, evitar ornamentação desnecessária usando da sabedoria para ornamentar visando tão somente uma elevação funcional, A.W.N. Pugin, pioneiro dessa visão artística, denominada Arts and Crafts, orientava a construção de suas obras por dois princípios:
A primeira, que a construção se limitasse aos elementos estritamente necessários para a comodidade e a estrutura e, a segunda, que o ornamente se ativesse ao enriquecimento dos elementos construtivo. (CARDOSO, 2008, p. 77)
Apesar do vocabulário puxado para a carreira arquitetônica daquele a quem se refere o trecho resume bem a mentalidade dos adeptos a esse movimento, ornamentação orientada à função e ao material, não tentando esconder os componentes do artefato criado, se for de madeira deve ser evidente que é, assim é feito o “enriquecimento dos elementos construtivos” de um objeto segundo essa linha de pensamento, esse ideal de beleza por vezes se refere a esse comportamento de mostrar o material utilizado como sinceridade da forma produzido.
Em contraste a essa visão mais naturalista e romântica do século XIX, a qual trazia uma certa humildade na forma, procurando subordiná-la às necessidades humanas, o século XX chegou batendo de frente com toda essa visão, estava numa incessante busca por uma nova estética para aquela época, algo que realmente refletisse o futuro, por muitas das vezes sendo idealizada essa estética a partir do ambiente urbano, e não é só isso, pode ser vista oposição também entre a megalomania do Art Decó e seus arranha-céus e os princípios humildes do Arts and Crafts, pois o primeiro se voltava bastante para a alta sociedade, com detalhes finos, valorizando materiais caros, sendo os luxuosos padrões extremamente geometrizados em preto e dourado praticamente a marca do movimento, que por sua vez se encaixa muito bem com toda a influência faraônica egípcia e da exaltação a grandiosidade da forma refletida por figuras remetendo à antiguidade clássica, tendo somente a crise de 29 sido capaz de segurar as rédeas desse movimento, fazendo-os regredir ao cromo, e outros materiais de uso mais comum na indústria. Além dessa dimensão mais prática na mudança do pensamento de como elaborar a forma trazida pelo Art Decó, também houveram diversas novas influências teóricas, ênfase para o futurismo.
A influência do futurismo se deu principalmente no reino da ideias e sua imagem de máquinas transformando a sociedade e a arte foi difundida e absorvida por toda a Europa. (HESKETT, 1997, p. 96)
O futurismo e o pensamento que o permeava foi muito expressivo dentre as correntes de vanguarda, as quais, em geral, também viam na estética de máquina, na geometria euclidiana e  no racionalismo uma elevação dos padrões estéticos, o progresso, a mudança. Por conseguinte esse pensamento tomou em maior ou menor grau a mentalidade de uma geração inteira de designers, vide toda a influência na Bauhaus, Vkhutemas e afins, todas essas instituições ensinavam buscando uma integração à indústria, criando formas mais facilmente reprodutíveis em máquinas ou abstraindo as formas para focar na mensagem e não distrair com ornamento, buscava-se um distanciamento entre o juízo de valor do artista e a obra. Uma analogia aos dias atuais talvez seja a busca por integrar tudo quanto for possível à rede, se quer digitalizar tudo, por na nuvem, vemos o flat design dos sites invadindo nosso cotidiano cada vez mais, no audiovisual, rótulos, há poucos anos a loucura pela leiturabilidade e críticas constantes à estilização em fontes, por mínima que fosse, sendo considerada a Helvetica rainha suprema de todo o Design, a epítome do bom gosto.
Na atualidade, nossa realidade é praticamente tomada pela produção industrial, com o avanço da tecnologia tendo tomado as camadas mais básicas da cadeia produtiva, até as peças mais básicas do dia-a-dia passaram a ser feitas de modo quase totalmente automatizado em grande escala e a preços baixos, tudo isso nos faz pensar: e o artesão? ainda teria espaço para ele na nossa cadeia produtiva? De fato, o ofício do artesão vem andado bastante em baixa em comparação ao ritmo de produção atual, mas ainda há espaço sim, e não seria algo tão surreal dizer que é uma atividade voltando à ascendência no mercado, não  é algo distante da nossa realidade, vemos constantemente o artesanato como uma primeira opção para os famosos souvenirs, isso porque ainda se vê um valor muito grande no artesanato atribuído bastante à sua exclusividade, muitas das vezes se pode até dar um presente mais luxuoso industrializado mas é preferido dar algo único proveniente do artesanato.
É a singularidade e exclusividade de cada peça que têm ditado o interesse […] Os consumidores querem peças diferenciadas, inovadoras, estão cansados dos produtos em massa, todos iguais, sem carácter. Criatividade, identidade, qualidade e o facto de serem feitos à mão, são características determinantes para o sucesso destes produtos. (FERNANDES, 2010, p. 103)
No século XXI há uma exaltação muito grande ao diferente junto à busca pelo “verdadeiro eu”, todos querem ter uma identidade, todos querem ser exaltados por serem pessoas excêntricas, únicas, e isso se estende à dimensão do consumo também, é praticamente um reavivamento de demandas tal como as dos nobres de antigamente, os quais pagavam para guildas fazerem os melhores móveis para se destacarem um dos outros, agora trocando a suntuosidade pela exclusividade. Queremos algo planejado exclusivamente para a gente, se vê muito essa cultura no meio dos ilustradores freelancers com o mercado das comissions, literalmente artes por comissão, elas são vendidas a pessoas físicas com a condição de não poderem usar comercialmente e por isso “podem” conter personagens de terceiros, apesar de infringir leis de copyright é algo tão restrito que os criadores originais não costumam se preocupar. Mas por que há esse mercado se poderiam muito bem pagar por alguma ilustração oficial, frequentemente feitas até por outro artista muito mais experiente? Há diversas justificativas, valorização do artista independente, gosto pessoal por um certo traço, mas de uma forma ou de outra se cai na exclusividade, a barreira legal de certa forma ainda te dá uma garantia extra de ninguém mais ter. Além disso, há também uma certa movimentação para reviver ofícios de artesanato do passado, por exemplo, o ferreiro, existem aqueles que fazem por hobby e para manter a herança cultural, como a Guilda de ferreiros do Potomac, aqueles que usam como arte exclusivamente, como Junko Mori, forjando suas magníficas peças com formas inspiradas em vegetais, e até aqueles que de fato voltaram a viver desse trabalho como sua rotina, tal como a Baltimore Knife & Sword, e é interessante essa última pois também revela outro aspecto moderno dado ao artesanato, a natureza contemplativa, a ferraria de armas Baltimore se popularizou devido aos vídeos do YouTube que faziam reproduzindo armas de jogos, filmes, desenhos e afins, tudo isso também é ressaltado pela cultura de entretenimento que há em cima do “do it yourself”, ou de ver alguém muito habilidoso realizando um ofício manual.
Por fim, com este apanhado histórico é interessante se questionar, para onde estamos seguindo? É possível ver uma nova tendência humanista, por meio dessa questão de um reavivamento do artesanato, o qual apesar de ser bem restrito a um nicho é apreciado pela cultura geral, e não somente na produção, mas no uso, user experience é levada muito a sério hoje em dia, no entanto, com todas as indas e vindas de várias tendências do passado, não se sabe se será somente uma moda passageira, se virão tecnologias para tomar o espaço. O Design e a indústria ainda nos mostrarão muitas formas de surpreender, agora só resta tentar participar ao máximo trazendo influências para que sejam de fato surpresas boas.


Referências

HESKETT, John. Desenho Industrial . 2. ed. [S.l.]: José Olympio, 1997. 10, 96 p.

CARDOSO, Rafael. Uma Introdução à História do Design . 3. ed. [S.l.]: Blucher, 2008. 76, 77 p.

FERNANDES, Mirla da Silva. Estratégias para o desenvolvimento do artesanato contemporâneo na Madeira . Funchal: [s.n.], 2010. 103 p. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/62477753.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2018.


Ficha técnica

Texto desenvolvido por Leon Siqueira sob a orientação do Prof. Dr. Rodrigo Boufleur, para a disciplina Introdução ao Estudo do Design. O texto colabora com o projeto de extensão “Blog Estudos sobre Design” (http://estudossobredesign.blogspot.com) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Artes - Bacharelado em Design - Novembro de 2018.